Como uma igreja criou uma brigada voluntária para combater incêndios florestais
as soluções para a crise climática também podem brotar nas igrejas evangélicas, onde a fé não é um discurso abstrato
Em 2022, eu atuava como consultor ambiental e fui contratado para executar um projeto que envolvia famílias impactadas pela construção de uma hidrelétrica, meu objetivo era reduzir os danos causados pelo empreendimento. Durante uma das visitas encontrei Marcos, um pescador e Pastor evangélico. Ele me convidou para tomar um cafezinho, e enquanto isso conversávamos, foi então que ele mencionou um trecho da Bíblia, do livro de Levítico, capítulo 25, para explicar a dor que sentia diante da ganância que destruía o rio e a vida da sua comunidade. A usina havia reduzido drasticamente a população de peixes, sua principal fonte de alimento, e tornado a água imprópria para consumo.
O trecho que ele citou fala sobre a “Lei do Sábado da Terra”. É um texto simples, mas profundo: o povo deveria cultivar a terra por seis anos e, no sétimo, deixá-la descansar. Nada de plantar, podar ou colher para estocar. O que crescesse espontaneamente serviria de alimento para todos: ricos, pobres, trabalhadores, estrangeiros, e até os animais. Era um lembrete poderoso de que a terra não pertence ao ser humano, mas a Deus, e deve ser cuidada com respeito e limite.
A fé evangélica entende que os textos bíblicos não são apenas estorinhas com bons princípios morais, não o obedecer é uma transgressão espiritual, é o que se chama de pecado. Marcos estava sinalizando que as transgressões podem ser cometidas individualmente ou coletivamente. A exploração desenfreada da natureza é um bom exemplo de uma transgressão coletiva, que acumula o que muitos governos, cientistas e ativistas climáticos chamam de “dívida ecológica”.
Nesse mesmo texto citado por Marcos, a Bíblia ensina que, se a terra não for deixada descansar, haverá consequências. Salvo as devidas proporções, a bíblia está afirmando que a exploração desenfreada da natureza gera uma dívida, e mais cedo ou mais tarde, essa dívida retornará… Hoje, temos visto ela voltar na forma de enchentes, secas, deslizamentos, queimadas. O caos climático é a fatura chegando.
E, quando essas tragédias ocorrem, é comum ver igrejas evangélicas nas áreas mais afetadas chegando primeiro que o estado, e oferecendo as primeiras respostas de apoio e acolhimento. Sou evangélico, desde sempre me envolvi nesse tipo de ação, mas nos últimos anos, tenho acompanhado mais de perto iniciativas que nascem dentro dessas igrejas. Permita-me compartilhar uma dessas.
No bairro Distrito Industrial, em Rio Branco (AC), não tem sido uma ONG, uma universidade ou um órgão público que lidera as ações ambientais. Tem sido uma igreja: a Comunidade Batista Vida. O lema deles é simples: “Servir é o nosso DNA”. Diante de enchentes recorrentes, insegurança alimentar e doenças ligadas à proliferação de mosquitos, a igreja criou a Rede de Ações Ambientais. Começaram transformando quintais abandonados em agroflorestas urbanas, garantindo comida fresca a famílias carentes. Fizeram mutirões de limpeza em quintais para reduzir criadouros de doenças. Quando o rio transbordou, novamente estavam lá: ajudando a reconstruir casas, acolher famílias e distribuir doações.
Mas foi num fim de semana abafado, num clima tipicamente amazônico, que testemunhei algo ainda mais ousado: a criação da 1ª Brigada Voluntária e Inter-religiosa de Combate a Incêndios Florestais do Brasil. Quando cheguei para acompanhar a formação, não encontrei apenas apresentações teóricas. Havia capacetes, abafadores, mochilas de água e cerca de trinta pessoas — homens, mulheres, jovens, idosos — prontos para aprender a enfrentar o fogo que ameaça suas casas e a floresta ao redor.
No domingo à noite, o templo da Comunidade Batista Vida virou espaço de celebração. Ali, mais do que um curso, havia um senso renovado de propósito. Aqueles voluntários, a maioria sem formação técnica anterior, estavam assumindo protagonismo diante de um problema que normalmente se espera que governos resolvam. Enquanto ensinavam a apagar incêndios, estavam reacendendo algo ainda mais valioso: a esperança.
A esperança de que as soluções para a crise climática não precisam ser protagonizadas apenas pelos centros de pesquisa ou grandes capitais, elas também podem brotar nas periferias, nos bairros mais afetados, nas igrejas evangélicas tantas vezes subestimadas — onde a fé não é um discurso abstrato, mas uma prática diária de cuidado com o próximo e com o meio ambiente.
É ali, entre cultos e mutirões, entre orações e ações concretas, que surgem iniciativas ousadas e profundamente enraizadas na realidade local. Com os recursos que têm nas mãos, movidas por sua fé, com um profundo senso de missão e solidariedade que transcende políticas públicas e vai além da burocracia, essas igrejas, tem protagonizado um ativismo climático com rosto humano, com nome, com história, e principalmente: com fé.
É verdade que, na maioria das igrejas evangélicas brasileiras, pouco se fala nos termos técnicos como “justiça climática”, “mitigação de danos” ou “resiliência ambiental”, mas, na prática, o que se vê é uma fé coerente com o cuidado com o meio ambiente e com os mais vulneráveis. Uma fé que reconhece que Deus se importa com o planeta, e com todos os que nele habitam. Uma fé disposta a agir para que conforme as dívidas ecológicas chegarem afetem menos pessoas.
Texto de Carlos Silveira – Coordenador de Mobilização e Formação na Interfaith Rainforest Initiative.
Nota: Conteúdo publicado originalmente no blog Um Só Planeta.