Uma canção e um chamado: Fazer a Diferença para Mudar o Mundo
Por que preciso de recomendação bíblica para amar a Terra e cuidar da natureza?
“Há que se cuidar do mundo”
Uma canção brasileira marcou profundamente um dos períodos mais dramáticos que o país viveu durante a retomada da democracia: “Coração de Estudante”, de Milton Nascimento e Wagner Tiso, que foi lançada em 1983 e se tornou o hino do movimento das Diretas Já. Naquela altura, vivíamos o desafio de ficarmos indiferentes ou acreditarmos que era possível mudar alguma coisa no Brasil. Entre os tantos versos da canção, um deles me tocava particularmente: “Há que se cuidar da vida / Há que se cuidar do mundo”. Ler o livro Fazer a Diferença para Mudar o Mundo, de Dave Bookless e Renovar Nosso Mundo, é como ouvir aquela canção e os desafios renovados e renovadores da esperança.
Desde muito tempo tenho pesquisado e esperado por um documento dessa natureza, uma carta que dialogue com os cristãos contemporâneos sobre os dilemas e desafios que enfrentamos em relação à crise ambiental mundial. Tenho sofrido muito com a indiferença desse seguimento em relação à natureza que agoniza, à beleza do mundo e a responsabilidade coletiva pelo cuidado do planeta. Para muitos desses irmãos o cuidado da Terra faz parte da agenda de pessoas da “esquerda”. Essa distorção ideológica tem afetado profundamente a comunidade brasileira, sobretudo nas últimas décadas em que o pensamento fundamentalista, o negacionismo, as fake news e as teorias da conspiração se espalham pelos quatro cantos e deixam marcas nas quatro paredes das igrejas.
Enquanto lia o texto, uma coisa me incomodava e angustiava: Por que preciso de recomendação bíblica para amar a Terra e cuidar da natureza? Por que preciso do texto sagrado para me dizer que o chão em que piso é terra santa? Não bastaria o reconhecimento e o respeito pala ciência e a aprendizagem dos rudimentos da educação ambiental? Não bastaria nosso contato direto com a natureza, a experiência do belo e a contemplação das forças da criação? Talvez, sim. No entanto, dadas as atuais circunstâncias, é preciso explicitar aquilo que já está presente no livro sagrado, em suas linhas e entrelinhas. É preciso argumentar e dizer com todas as letras que as Escrituras nos ensinam que é preciso amar a Terra, cuidar dela. Mais do que ará-la, acariciá-la e preservar o que consideramos ser obra do Criador. Essa é uma lição difícil de aprender, quando não se quer enxergar, pois implica enfrentar nosso próprio orgulho e nosso envolvimento no processo de destruição. Todavia, que aprendamos, e bem, pois segundo o ditado judaico:
“aquilo que aprendemos nos muda para sempre”.
Ao longo dos séculos, durante toda a modernidade e mesmo antes dela, o cristianismo viu-se capturado por uma forma de pensar que condenava este mundo ao abandono, à destruição, ao desprezo, ou como um vale de lágrimas, ou um lugar de castigo a ser suportado, em benefício de um outro mundo, transcendente, invisível, perfeito e eterno. Essa teologia e essa atitude diante da vida e do mundo serviu de cobertura para a exploração humana, para a colonização dos povos indígenas e a exploração dos povos africanos, para a destruição dos recursos naturais em função de uma economia capitalista cada vez mais voraz e cobiçosa de riquezas. A própria ideia de enxergar a natureza como “recurso” faz parte dessa forma de pensar. E os cristãos embarcaram nesse discurso e desse modo servem aos interesses do mercado e do sistema econômico do presente século.
Ninguém pode dizer: “Isso não é comigo”
O livro Fazer a Diferença para Mudar o Mundo, em sua proposta de reflexão sobre a crise climática e os desafios ambientais dos nossos dias, oferece um alento e uma inspiração para que novas posturas sejam possíveis dentro da igreja cristã brasileira e mundial. O cristão não precisa endossar tudo o que os políticos e as lideranças religiosas conservadoras dizem e fazem. É possível olhar as Escrituras e encontrar nelas claras referências para tomar atitudes novas, reverberar discursos outros, iniciar projetos que busquem restaurar o nosso mundo, que anunciem a viabilidade de um futuro mais justo e ambientalmente responsável. A natureza não é recurso, é gesto do Criador para conosco, é sinal de seu amor, é beleza e graça ao mesmo tempo. A natureza é nossa casa comum, nosso corpo e família, nosso ar e alimento. O mundo que Deus criou é este aqui, e a vida que nos deu é esta mesma que temos e que precisa ser reconhecida e valorizada, como diz o salmista: “Este é o dia que o Senhor nos fez”. Nossa fé na vida eterna precisa ser encarnada de verdade, plenamente, do mesmo modo como o Verbo se fez carne e habitou entre nós.
O livro começa com dados assustadores sobre o cenário atual: notícias nada animadoras, estatísticas, toda a complexidade do problema e declara: “Fomos nós, e não Deus, que exploramos gananciosamente os ecossistemas e nos vulnerabilizamos” (p. 17). Então parte para a leitura das Escrituras, passagem por passagem que falam do mundo e da natureza. Depois, compartilha uma série de depoimentos de cristãos que, ao redor do mundo, estão envolvidos em projetos de preservação e restauração ambiental, mostrando que a questão ecológica não é “agenda da esquerda”, mas compromisso de todos os habitantes do planeta Terra, inclusive os cristãos, que o desejo de novo céu e nova terra não implicam desprezo por este céu e por esta Terra, muito pelo contrário.
Sim, precisamos de engajamento de cada um de nós. Precisamos de todas as forças disponíveis para reverter o processo de destruição da vida, da biodiversidade, dos ecossistemas, dos animais selvagens, dos rios, das montanhas, dos mares, dos ares… Ninguém tem álibi, ninguém pode dizer: “Isso não é comigo”. Esta é uma tarefa de todos nós, seres humanos, e envolve os campos da ciência, da política, da educação, dos movimentos sociais e, neste caso, da teologia e das lideranças religiosas, de todas as pessoas que participam das comunidades de fé. É cada um, somos todos nós. É tudo, é o todo – palavra e ação, corpo e ânima, espera e caminhada. “E há que se cuidar do broto / Pra que a vida nos dê flor e fruto”.
Por Gladir Cabral – professor, pastor e músico.