A mesma criação, um novo olhar: lições de uma jumenta profeta sobre a relação cósmica

ALÉM DE NECESSIDADE E OBEDIÊNCIA, EXISTE OUTRO MOTIVO QUE NOS IMPULSIONE A CUIDAR DA CRIAÇÃO?

[Maria Alejandra Andrade V. (outubro de 2024)]

A crise ambiental que enfrentamos nos mostrou que vivemos em um mundo interconectado: os danos que causamos ao meio ambiente não afetam apenas as espécies animais e vegetais, mas também afetam a nós, seres humanos. É por isso que, nos últimos anos, a conscientização sobre o cuidado ambiental tem crescido, nas escolas, nas empresas, na política internacional, na administração pública e também nas igrejas. Assim, gostaria de propor que existem, pelo menos, três motivações para cuidar da nossa “Casa Comum”.

A primeira é motivada pela necessidade: percebemos que a poluição e a destruição dos ecossistemas nos retornam como um “bumerangue” e sentimos isso na alteração dos ciclos naturais e na magnitude, frequência e imprevisibilidade dos desastres naturais. Por ironia e injustamente, estudos demonstraram globalmente que aqueles que mais sofrem com os efeitos devastadores das mudanças climáticas são os que menos as geraram para nós. Essa conscientização fez surgir várias respostas concretas, destinadas a reduzir o impacto que a atividade humana gera no planeta. Entre elas estão: rever e reduzir nossos níveis de consumo, separar o lixo e reciclar o máximo possível, dar uma segunda vida aos produtos por meio de uma economia circular, inovar para usar menos energia fóssil e fazer a transição para energias “limpas”, etc.

Um segundo motivo para cuidar da criação vem da fé e tem a ver com a obediência a Deus Criador. Para nós, seguidores de Jesus, cuidar de todos os seres vivos responde ao mandato bíblico de cuidar do que Deus criou e ama. A criação toda está presente desde o início do relato bíblico em Gênesis 1 com a criação do universo, até seu fim em Apocalipse 21, com o estabelecimento de “novos céus e uma nova terra”; Portanto, tanto o pecado quanto a salvação têm dimensões individuais, comunitárias e cósmicas. A partir dessa concepção, a irrupção do pecado descrita em Gênesis 3 rompeu os relacionamentos com Deus, com outros seres humanos e com o restante da criação. Nessas novas relações, os seres humanos têm o encargo divino de serem mordomos do que pertence a Deus, não a partir de uma lógica de dominação, mas de um cuidado que sustenta a vida.

Embora eu compartilhe muito das duas perspectivas, minha preocupação é que ambas correm o risco de serem insuficientes porque não abordam o cerne do problema: a maneira como nós seres humanos concebemos e nos relacionamos com a criação. Assim, quero propor uma terceira motivação, que tem a ver com a consciência de nossa inevitável interdependência e interconexão com todos os seres que habitam o cosmos. Deste ponto de vista, a motivação para cuidar de toda a criação não é nem a necessidade nem a obediência, mas o amor. Aqui nosso mundo moderno e ocidental tem muito a aprender com as cosmoexperiências indígenas, e quero me referir a seguir à sabedoria andina kichwa, que vem da Cordilheira dos Andes, em minha terra equatoriana.

Para a sabedoria andina kichwa, a realidade é uma espécie de tecido cósmico da vida, porque nela habita tudo o que existe no tempo e no espaço: o humano e o não humano, o visível e o invisível, o que está no céu, na terra e sob a terra (submundo). Nesse tecido da vida, passado, presente e futuro também convergem, então espíritos e ancestrais também fazem parte desse tecido. A ideia do tecido tem algumas implicações. Por um lado, nada existe fora dele, mas, por outro lado, nenhum elemento do tecido pode existir se não estiver relacionado aos outros elementos. Em outras palavras, se não há relação, o elemento não existe (se fôssemos usar a analogia de Descartes “Penso, logo existo”, aqui diríamos “Eu me relaciono, logo existo). Os princípios que governam as relações entre os elementos do tecido cósmico incluem interdependência, interconexão, complementaridade, correspondência, reciprocidade, ciclicidade e mutualidade. Os seres humanos também são regidos por esses princípios relacionais, assim como todos os outros elementos não humanos, visíveis e invisíveis. Esses princípios são refletidos de maneiras muito concretas na vida comunitária por meio de conceitos como Sumak Kawsay (“Bem-Viver”), que afirma que o bem individual nunca pode ser alcançado às custas do bem da comunidade humana ou não humana (natureza). Em outras palavras, não se pode falar de Bem-Viver, se o progresso de alguns destrói a natureza ou gera desigualdade social. Outro conceito andino é o Sumak Qamaña, que alude a uma ética do suficiente. Promover o “suficiente” em um mundo cujos recursos são limitados é uma mensagem poderosa contra a superexploração, a superprodução, o consumo excessivo e o descarte excessivo.

Embora pareçam ensinamentos “de outro mundo”, a ciência nem sempre esteve tão longe de conclusões desse tipo. O filósofo, paleontólogo e teólogo francês do século XIX, Theillard de Chardin, argumentou que o ser humano e tudo o que existe no universo vem da matéria cósmica gerada pelas estrelas, por isso se aventurou a afirmar que nós seres humanos somos “poeira estelar”. Se nossa fé bíblica nos leva a afirmar que todos os seres vivos em nosso planeta – desde os menores, como microorganismos e vermes, até os maiores, como baleias, passando por rios, árvores, montanhas e seres humanos – foram moldados pelas mãos do mesmo Deus Criador (Gênesis 2:6,19), então não é errado afirmar que compartilhamos uma origem comum, que somos portadores das marcas divinas de nosso Criador, que somos irmãos e irmãs de tudo o que nosso bom Deus criou e que todos os seres que habitam este tecido de vida pertencem a ele. Vale a pena notar que, em Gênesis, “Adão” vem do hebraico adamah, que significa “terra fértil”. E foi assim que Francisco de Assis o entendeu, há muitos séculos, cuja vida e vocação foram transformadas a partir do encontro com pássaros, coelhos, vermes, cordeiros, peixes e grilos. Esse encontro com a natureza permitiu que ele “despertasse” espiritualmente e o fez reconhecer que aquelas criaturas também eram sagradas, porque pertencem a Deus. A espiritualidade franciscana oferece pistas para a Igreja cristã de hoje cultivar uma relação com a criação a partir de uma perspectiva mais “horizontal”, como “iguais” e “irmãos e irmãs”, afirmando que: “nossa primeira responsabilidade, como seres humanos, é ser criaturas de Deus, vivendo em relação com o Criador e com a criação. Nossa ética fundamental é amar a Deus e ao resto da criação.”

Com base nessas contribuições de cosmo-experiências ancestrais, ciência e tradição cristã, quero propor que o problema subjacente que nosso mundo enfrenta em relação à natureza é a dessacralização, uma vez que perdemos a capacidade de ver a criação com um senso de sacralidade. Esquecemos que a criação traz as marcas divinas de seu Criador, que Deus habita nela (a criação é a epifania de Deus) e que, portanto, é sagrada. Não estou sugerindo que o mundo natural seja Deus (isso é chamado de panteísmo), mas estou sugerindo que Deus habita em sua criação (isso é chamado de panenteísmo). No momento em que a terra deixou de ser um “alguém” e se tornou um “algo”, tornou-se um mero “recurso” ou “meio” a serviço dos interesses dos seres humanos. Então acreditamos ter permissão para possuí-la, comprá-la, vendê-la, explorá-la, abusá-la e descartá-la. É precisamente por isso que o teólogo brasileiro Leonardo Boff defende chamar a terra de “mãe”: a “mãe” é respeitada e cuidada, não vendida. Dessa forma, o que precisamos é de uma conversão espiritual, que transforme nossa maneira de olhar para a criação – com um senso de sacralidade – e nossa maneira de nos relacionarmos com ela – caminhando nesta terra com os pés descalços, reconhecendo, como Moisés em Êxodo 3, que o chão em que pisamos é sagrado.

Tal conversão é o que aconteceu com o profeta Balaão, no relato de Números 22:21-35. Esta passagem foi lida a partir de várias lentes: a da interculturalidade e da soberania de Deus, a da proteção de Deus sobre um povo, a da fidelidade do profeta perante Deus, entre outras. A lente que quero propor é a da relacionalidade cósmica, e quero fazê-lo por meio de uma leitura metafórica.

Neste texto Balaão, um profeta não hebreu, é desafiado a mudar seu caminho quando sua jumenta, uma criatura humilde, percebe a presença do anjo de Deus diante dele, em três momentos específicos em que o caminho se torna cada vez mais estreito. Apesar de Balaão reagir com violência, a jumenta salva sua vida desviando do caminho. Essa história é um poderoso lembrete de que os seres humanos não são os únicos que têm uma relação com Deus: a criação – na figura do burro – é sensível à presença de seu Criador, interage com ele e é defendida por ele. Balaão, por outro lado, não só é incapaz de discernir a presença do anjo de Deus em seu caminho, mas também não percebe que, por meio de suas ações, sua jumenta o estava salvando da morte. Por outro lado, a distância que existe entre o cuidado da jumenta para com o seu dono e a resposta violenta deste para com ele, faz-nos pensar na desproporção que existe entre os benefícios e o cuidado que a natureza oferece ao ser humano, dando-nos água, alimento, calor, sombra e sustento da vida, enquanto recebe, em troca, descarte e destruição causados por nós. Portanto, as perguntas que a jumenta faz a Balaão poderiam perfeitamente ser as perguntas que Pachamama – a “Mãe Terra” – poderia fazer a nós, seres humanos: O que eu fiz para que você me espancasse já três vezes? Não sou eu sua jumenta de confiança, em que você montou por tantos anos até agora? Eu já fiz algo assim com você? Ao ouvir sua jumenta falar, o anjo de Deus abriu os olhos de Balaão e ele finalmente pôde reconhecer seu erro em não perceber a presença de Deus em seu caminho: “Pequei”, “não percebi”, “já você considera isso errado, voltarei”. A intervenção divina permitiu que Balaão visse “sua jumenta de sempre” com “novos olhos”.

Para concluir, é preciso admitir que, como nesta passagem, o caminho dos seres humanos é cada vez mais estreito, porque as possibilidades de reverter os danos que estamos causando ao planeta são cada vez menores. Especialistas em mudanças climáticas já falam sobre o ponto de “não retorno”. Milhares de espécies animais e vegetais desapareceram para sempre, gerando um desequilíbrio em nossos frágeis ecossistemas.

Esta história da “jumenta profeta” é um convite à reflexão sobre como tratamos a criação e como podemos mudar a maneira como interagimos com ela, porque a maneira como olhamos para a criação define a maneira como nos relacionamos com ela.

O que precisamos, então, é de uma conversão espiritual, de uma transformação de nossa visão e de nossas ações, que nos leve a ver toda a criação com olhos de sacralidade e a viver em harmonia com ela. Só assim poderemos responder ao apelo urgente para proteger e restaurar a criação de Deus. No final da história, o anjo de Deus não pede a Balaão que volte, mas que siga seu caminho, mas que ande de maneira diferente, desta vez apegado à vontade de Deus. Muitas de nossas ações já não podem ser revertidas. No entanto, ainda temos tempo para continuar nosso caminho amando e cuidando do que pertence somente a Deus.

Sobre a autora

María Alejandra Andrade Vinueza, Gerente de Alianças Estratégicas e Teológicas da Tearfund para América Latina y el Caribe. Tem formação nas áreas de Sociologia, Cooperação e Desenvolvimento Internacional, Direitos Humanos e Teologia. Está cursando mestrado em Estudos Internacionais da Criança no King”s College London, com foco em pesquisas sobre sistemas de proteção à criança, fé, espiritualidade e resiliência e Objetivos de Desenvolvimento Sustentável dos Direitos da Criança.

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