Pandemia, periferias e novos compromissos socioambientais para as igrejas

O presente artigo apresenta algumas reflexões em torno desses desafios, esperando trazer contribuições para o enfrentamento desse cenário. Ele poderá ser um guia para o aprofundamento de novas discussões nas instituições religiosas.

Introdução

Ainda impactados com os horrores da pandemia, meio que vitimou milhões de  pessoas, vozes se levantam para discutir os desafios que estão sendo criados e aqueles que surgirão, sobretudo nas periferias urbanas. Superá-los requer a participação de todas as pessoas, bem como das diferentes instituições, num compromisso ético de responsabilidade individual e coletiva. Eu me junto a essas vozes, também preocupada em pensar  saídas.

As sugestões aqui apresentadas foram construídas ao longo de minha trajetória acadêmica, na qual as questões ambientais estiveram presentes. Foram construídas também durante minha atuação, no período de 2007 a 2010,  no Seminário Batista do Sul do Brasil, ministrando a disciplina Espaços Pedagógicos e Praticas de Educação Ambiental no curso de Pedagogia. Juntamente com alunas e alunos iniciamos a construção do conceito de Mordomia da Terra.

Também foram construídas no diálogo com pessoas de perto e de longe oriundas de diversas áreas, nos eventos realizados em meio ao assombro diante da pandemia, que não é a primeira. Contribuições significativas estão sendo construídas no Movimento Renovar Nosso Mundo, do qual faço parte. 

O presente artigo apresenta algumas reflexões em torno desses desafios, esperando trazer contribuições para o enfrentamento desse cenário. Consideramos que ele poderá ser um guia para o aprofundamento de novas discussões nas instituições religiosas, envolvendo mulheres, homens, jovens e também as crianças.

OS DESAFIOS E AS NOVAS RESPONSABILIDADES

É tempo de assumir responsabilidades diante dos novos desafios, que podem ser organizados em dois grupos. O primeiro é  evitar a ocorrência de novas pandemias e  o segundo, cuidar dos impactados pela covid-19 nas periferias urbanas. Ambos requerem informações para serem superados, seja no curto, médio ou longo prazos, porém com ampla participação

Para superar o desafio da ocorrência de novas pandemia consideramos que seja necessário pelo menos três informações:  as possibilidades de novas pandemias,   as causas das pandemias e  algumas das recomendações indicadas por especialistas.

as possibilidades de novas pandemias

Um Relatório da  United Nations Environment Programme e o International Livestock Research Institute lançado  no dia 9  de julho, intitiulado Preventing the next pandemic: zoonotic diseases and how to break the chain of transmission. (Prevenindo a próxima pandemia: doenças zoonóticas e como quebrar sua cadeia de transmissão) prevê para os  próximos anos outras zoonoses  e que atingirão pessoas ao redor do mundo.  Tal afirmação é feita em vista do fato que, mesmo diante da gravidade da pandemia, suas   causas não estão sendo tratadas, mas sim seus sintomas. 

as causas das pandemias

Pesquisas mostram que o problema está na destruição ambiental causada pela expansão agrícola, industrial e urbana. Principalmente dos locais próximos à borda de florestas tropicais onde mais de 25% da floresta original foi perdida tendem a ser focos de transmissões virais entre animais e humanos. Morcegos, por exemplo, que são os prováveis reservatórios de vírus como o da Covid-19, passam a se alimentar nas proximidades de ambientes urbanos quando seu hábitat natural é perturbado pela construção de estradas, extração de madeira e outras atividades humanas. São as agressões ao meio ambiente, principalmente as que provocam a  destruição dos habitats. 

A existência dos ecossistemas é de suma importância para a manutenção do equilíbrio da cadeia da vida, como mostra a citação abaixo:

Os ecossistemas naturais desempenham um papel crucial na sustentação e alimentação da vida, incluindo a de nossa espécie, mas também desempenham um papel fundamental na regulação da transmissão e disseminação de doenças infecciosas, como as zoonoses. A destruição de habitats e de biodiversidade causada pelo homem rompe o equilíbrio ecológico, capaz de conter os microrganismos responsáveis por algumas doenças e criar condições favoráveis à sua propagação.
As ações humanas são as grandes responsáveis
Invadimos florestas tropicais e outras paisagens selvagens, que abrigam inúmeras espécies de animais e plantas. Cortamos árvores; matamos ou prendemos animais e os enviamos aos mercados. Desorganizamos ecossistemas e liberamos vírus de seus hospedeiros naturais. Quando isso acontece, eles precisam de um novo. anfitrião. Muitas vezes, seremos nós.

– David Quammen escreveu recentemente no jornal The New York.

Além da destruição, há a criação de habitats ou ambientes artificiais que são pobres por natureza e têm alta densidade humana, o que pode facilitar ainda mais a disseminação de patógenos. Os subúrbios degradados e sem vegetação de muitas metrópoles tropicais, por exemplo, são o berço perfeito para doenças perigosas e para a transmissão de zoonoses.

As recomendações

Os principais  relatórios recomendam que o tema seja abordado de forma integrada, compreendendo a atenção à saúde humana, dos animais e do meio ambiente. Esses três  tópicos estão interligados e influenciam um ao outro. Não há como cuidar de um e esquecer o outro. O adoecimento ou destruição de um compromete os demais. Dentre as agressões ao meio ambiente, destacam-se a destruição dos habitats, o que fazer então?

Implementar programas de educação ambiental para sensibilizar a população sobre o tema e assim reduzir o desmatamento tropical e o consumo de animais silvestres como forma de alimento.

Investir  em programas que monitorem e reduzam a destruição das florestas tropicais e as atividades de tráfico de animais silvestres. 

Investir  em pesquisas focadas na detecção e controle de vírus que tenham potencial pandêmico,

Por fim, são necessárias medidas para reduzir as emissões de gases do efeito estufa e mitigar os impactos das mudanças climáticas em ambientes naturais e urbanos.

As igrejas poderão seguir tais  orientações de forma direta e indireta, como será mostrado quando discutirmos os princípios da Mordomia da Terra.

Quanto ao segundo desafio, que é cuidar dos impactados pela covid-19 nas periferias urbanas, faz-se necessário ter, pelo menos, informações sobre a pandemia nas periferias, as causas e os impactos sobre a população

A pandemia nas periferias

Uma pesquisa publicada no jornal El País (04.08.2020), intitulada “Os Mapas da Pandemia”, revela a desigualdade na América Latina. Através dos dados de contágio das cidades de São Paulo, Cidade do México, Bogotá e Argentina a matéria mostrou como a Covid-19 se disseminou mais nas áreas pobres e densamente povoadas. Aqui podemos constatar a exposição desigual de um grande percentual da população não só à poluição e a outros males ambientais do desenvolvimento, como também a uma doença. Se as elites se apropriaram dos espaços que oferecem melhores condições de vida; os pobres “se apropriaram” dos locais com piores condições de vida. Também podemos conformar o que Bordieu (1997) e Santos (1978) discutem sobre  a manifestação das desigualdades sociais no espaço urbano. Eles afirmam que é no espaço urbano que as desigualdades podem ser percebidas. Em tempos de crise, como a provocada pela pandemia, essas desigualdades e seus impactos se tornam mais visíveis.

As causas da situação nas periferias

Pelo menos cinco fatores contribuíram para a situação:

O primeiro fator são as condições de moradia –  com  casas que não possuem ventilação adequada, com  um número elevado de pessoas vivendo juntas.

O infectologista e coordenador do Núcleo de Medicina Tropical da Universidade Federal do Ceará (UFC), Ivo Castelo Branco explica que, como o H1N1 e a dengue, a alta densidade demográfica, a baixa ventilação dos espaços, a lotação das casas e a precariedade sanitária são fatores para uma disseminação maior e pouco controlável.

Há uma aglomeração doméstica constante e que se intensifica no horário noturno, quando os dormitórios são compartilhados por muitos.

O segundo fator é a impossibilidade de ficar em casa – A impossibilidade afeta a maioria, seja os que estão no mercado formal de trabalho ou no informal, em ambos os casos são inserções precárias não lhes permite ficar em casa.

O terceiro, são as dificuldades de adquirir os produtos que permitam uma efetiva higienização, num contexto de diminuição da renda

O quarto é a precariedade dos serviços de saúde ou mesmo inexistência – Existem poucos serviços de saúde, com falta de pessoal e leitos.

E por último temos um fator que passou a ser discutido após a publicação de uma pesquisa realizada pela Universidade Federal de São Paulo,  que mostrou como os transportes coletivos se constituem em foco de disseminação do vírus e as pessoas da periferia passam muitas horas no interior dos mesmos, contaminando-se e contaminando seus familiares.

Os impactos da pandemia nas periferias

A conjugação desses fatores contribui para que nas periferias o vírus se propague com maior intensidade, como também que ele fosse mais letal, gerando impactos sociais e psicológicos.

Os  impactos sociais referem-se ao aumento das vulnerabilidades , devido em grande parte ao comprometimento da renda das famílias, provocado pelos seguintes fatores: desemprego, fechamento dos micro negócios, impossibilidade da realização de atividades autônomas e falecimento dos idosos provedores

Os impactos psicológicos referem-se aos danos provocados por diversas situações, como: choque das mortes de parentes e vizinhos, desemprego, interrupção de projetos de vida e incerteza em relação ao futuro.

Evidentemente outros impactos ocorrerão a curto, médio e longo prazos, que deverão ser identificados posteriormente. 

Muitas das nossas instituições estão localizadas em áreas pobres das cidades, nas quais vivem parcelas consideráveis da população impactada e que precisarão ser substituídas por algumas instituições religiosas e também através de políticas públicas. A participação das igrejas deve se dar nas duas frentes.

COMO AS IGREJAS ASSUMIRÃO AS NOVAS RESPONSABILIDADES

Superar tais desafios  faz com que as igrejas tenham novas responsabilidades que ultrapassam  o posicionamento durante a pandemia. Trata-se  de atender a um convite, posto para a sociedade desde os anos 80 com a publicação do Relatório Brundtland (Nosso Futuro Comum, 1987). A Bíblia também traz um convite à participação. Está lá em Gênesis, quando os seres humanos foram designados cuidadores da criação. O convite é para todos e todas. Mas o envolvimento da sociedade tem sido precário, sobretudo das instituições evangélicas.

As possibilidades de atuação das instituições religiosas podem ser viabilizadas através do exercício da Mordomia da Terra, conceito ainda em construção,  que teve início durante minha atuação no Seminário do Sul. Os principais princípios são:

  • Pedir perdão por nossa negligência
  • Reconhecer que fomos designados cuidadores da criação
  • Agradecer a Deus por ter sido colocado em tão alto posto
  • Reconhecer a grandiosidade da criação
  • Enaltecer ao Senhor por suas  obras
  • Aprender a cuidar da criação de forma a satisfazer o Senhor

Todos os princípios são importantes, porém vamos fornecer algumas pistas referentes ao último princípio, que é aprender a cuidar de forma a satisfazer o Senhor. 

A satisfação do Senhor depende de que sua criação seja cuidada, proporcionando vida abundante e plena para todas as espécies por ele criadas.

Nesse sentido a educação ambiental pode ser uma ferramenta a ser implementada nos estudos da Escola Bíblica Dominical, grupos de mulheres, jovens, adolescentes, projetos especiais e nas atividades com a comunidade. Há uma farta produção bibliográfica sobre o tema, disponíveis em meio impresso e digital.

O atendimento das necessidades dos impactados na periferia depende de novos olhares e parcerias significativas.

Conlusão

Há uma urgência no envolvimento das nossas instituições religiosas no cuidado com a criação de forma permanente. A pandemia da COVID 19 deixará sequelas sociais e psicológicas em muitas pessoas. Além de atendimento e necessário uma participação intensa no enfrentamento dos fatores que levaram a emergência dessa pandemia. 

E necessário agir junto as causas que estão fazendo com que nosso planeta deixe de ser aquilo para o qual foi criado, expresso em Isaias 45:18. Deus criou a Terra e a edificou; não para ser um caos, mas para ser habitada. Habitada por todas as espécies em toda a sua plenitude. Ta na hora de aprender a cuidar da criação de forma a satisfazer o Senhor.

Uma sugestão do Centro Gênesis é o Projeto Fragmentos Florestais: identificar, cuidar e amar, que pode ser desenvolvido em parceria com instituições religiosas de todo o país e que vem sendo implementado no bairro Água Mineral, São Gonçalo, RJ.

bibliografia

ADOLPHE, Geshé.  O cosmo.  São Paulo: Paulinas, 2004.
BOFF, L.  Ecologia: grito da terra, grito dos pobres.  São Paulo: Ática, 1995.  
_______,  Saber cuidar: ética do humano: compaixão pela Terra.  Petrópolis: Vozes, 1999. 
BRASIL.  Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.  4. ed. São Paulo: RT, 1999. 
________.  Lei n. 9.795, de 27 de abril de 1999.  Dispõe sobre educação ambiental, institui a política nacional de formação ambiental e dá outras providências.  Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/LEI9795.html. Acesso em: 10 maio 2021.
________.  Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981.  Dispõe sobre a política nacional do meio ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências.  Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6938.html. Acesso em: 10 maio 2021.  
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto.  Parâmetros curriculares nacionais: temas transversais: meio ambiente.  [Brasília: Secretaria de Educação Fundamental, 199-].  Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/meioambiente.pdf
Acesso em: 10 maio 2021. 
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente.  CONAMA – Conselho Nacional de  Meio Ambiente.  [Brasìlia: Ministério do Meio Ambiente, 20–].
Disponível em: http://www2.mma.gov.br/port/conama.  Acesso em: 10 maio 2021.
BRASIL. Presidência da República.  Comissão Interministerial de preparação Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente. O desafio do desenvolvimento sustentável: relatório do Brasil para a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.  Brasília: Secretária de Imprensa, 1991.
CONSUMO  sustentável: manual de educação.  Brasília: Consumers International MMA/IDEC,  2002.
CONFERÊNCIA INTERGOVERNAMENTAL SOBRE EDUCAÇÃO AMBIENTAL, 1.,   1977, Tbilisi.   Anais.  Tbilisi:  [S.n.], 1977.
DECLARAÇÃO de Estocolmo sobre o meio ambiente humano.   In: CONFERÊNCIA DE ESTOCOLMO, 1972, Estocolmo.  Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 1997.
DUVIGNEAUD, P.  La synthèse écologique. 2. ed. rev. e cor.  Paris: Doin, 1984.
DICIONÁRIO enciclopédico de psicologia. [Paris: Larousse, 1987].
DICIONÁRIO francês de ecologia.  [Paris]: Touffet, 1982.
HERCULANO, S. C.   Do desenvolvimento (in)suportável`à sociedade feliz. In: GOLDENBERG, M (org).  Ecologia, ciência e politica.  Rio de Janeiro: Revan, 1992.
LOUREIRO, Frederico Bernardo.  Educação Ambiental: repensando o espaço da cidadania.  2. ed.   São Paulo: Cortez, 2002.
MEDINA, M. N.   Elementos para a introdução da dimensão ambiental na educação escolar – 1ª ano.  In: IBAMA Amazônia: uma proposta interdisciplinar de educação ambiental. Brasília: [S.n.], 1994.
MOLTMANN, Jürgen. Dios en la creación.   [Salamanca: Sígueme, 1987].
MOSCOVICI, S.  A sociedade contra a natureza.  Petrópolis: Vozes, 1987.
________.   Representações sociais: investigações em psicologia social.  Petrópolis: Vozes, 2013.    
PADILLA, René.  Missão integral: ensaios sobre o reino e a igreja.  Londrina: Descoberta, 2005.
PADUA, Suzana  Machado;  TABANEZ, Marlene F.   Educação  ambiental: caminhos trilhados no Brasil.  Brasília:  [S.n.], 1997.
QUINTAS, José Silva.  Por uma educação ambiental emancipatória: considerável sobre a formação do educador para atuar no processo de gestão ambiental. In: PENSANDO  e praticando a educação ambiental na gestão do meio ambiente.  Brasília: IBAMA, 1997.
 REIGOTA, Marcos.  O que é educação ambiental.  São Paulo: Brasiliense, 2006. 
________.   Meio ambiente e representação social.  São Paulo: Cortez, 1995.
RICKLEFS, R. E.  A economia da natureza.  5. ed.  Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1973.
STEUERNAGEL, Valdir (org.).  A missão da igreja: uma visão panorâmica sobre os desafios e propostas de missão para a igreja na antevéspera do terceiro milênio.  Belo Horizonte: Missão, 1994. 
UNESCO (org.).  Educação ambiental: as grandes orientações da Conferência de Tbilisi.  Brasília: Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, 1997.
VICEDOM, Georg.  A missão como obra de Deus: introdução à teologia da missão. São Leopoldo: Sinodal, 1996.
– escrito por Lourdes Brazil, mestre e doutora em Ecologia Social – UFRJ, Economista e criadora e diretora do Centro de Educação Ambiental Gênesis –
www.centrogenesis.com.br

Filie-se ao movimento

Existimos para inspirar, apoiar e auxiliar a igreja evangélica brasileira a levantar sua voz contra as injustiças socioambientais e fazemos isso por meio de ações de sensibilização, informação, capacitação, controle social, incidência pública e mobilização.

Related Posts

Leave a comment